20/09/2010

singularidades de uma rapariga loura


(...)
Macário estava então na plenitude do amor e da alegria.
Via o fim da sua vida preenchido, completo, radioso. Estava quase sempre em casa da noiva, e um dia andava-a acompanhando, em compras, pelas lojas. Ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente, nesse dia. A mãe tinha ficado numa modista (1), num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia em baixo, no mesmo prédio, na loja.
O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul-ferrete, profundo, luminoso, consolador. 
- Que bonito dia! - disse Macário.
E com a noiva pelo braço, caminhou um pouco, ao comprido do passeio.
 - Está! - disse ela. - Mas podem reparar, nós sós...
 - Deixa, está tão bom...
 - Não, não. 
E Luísa arrastou-o brandamente para a loja do ourives.
Estava apenas um caixeiro, trigueiro de cabelo hirsuto.
Macário disse-lhe:
- Queria ver anéis.
 - Com pedras - disse Luísa - e o mais bonito.
 - Sim, com pedras - disse Macário. - Ametista, granada.

Enfim, o melhor.
 E, no entanto, Luísa ia examinando as montras forradas de veludo azul, onde
reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhões, os colares de camafeus, os anéis de armas, as finas alianças, frágeis como o amor, e toda a cintilação da pesada ourivesaria.
 - Vê, Luísa - disse Macário.
 O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcão, em cima do vidro da montra, um reluzente espalhado de anéis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e Luísa, tomando-os e deixando-os com as pontas dos dedos, ia-os correndo e dizendo:
- É feio. É pesado. É largo.
 - Vê este - disse-lhe Macário.
 Era um anel de pequenas pérolas.
 - É bonito - disse ela. - É lindo! 
- Deixa ver se serve - disse Macário.
 E tomando-lhe a mão, meteu-lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo, e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos esmaltados. 
- É muito largo - disse Macário. - Que pena !

- Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no pronto amanhã.


- Boa ideia - disse Macário - sim senhor. Porque é muito bonito. Não é verdade? As pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E estes brincos? - acrescentou, indo ao fim do balcão, a outra montra.
- Estes brincos com uma concha?
- Dez moedas - disse o caixeiro.
 E, no entanto, Luísa continuava examinando os anéis, experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa.
Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afirmou-se em Luísa, passando vagarosamente a mão pela cara.
 - Bem - disse Macário, aproximando-se - então amanhã temos o anel pronto. A que horas?
0 caixeiro não respondeu e começou a olhar fixamente para Macário.
 - A que horas?
- Ao meio-dia.
 - Bem, adeus - disse Macário. E iam sair. Luísa trazia um vestido de lã azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu passo, e as suas mãos pequeninas estavam escondidas num regalo branco.

- Perdão! - disse de repente o caixeiro.
Macário voltou-se.

- 0 senhor não pagou.
Macário olhou para ele gravemente.

- Está claro que não. Amanhã venho buscar o anel, pago amanhã.


- Perdão! - disse o caixeiro. - Mas o outro...

- Qual outro? - disse Macário com uma voz surpreendida, adiantando-se para o balcão.
 - Essa senhora sabe – disse o caixeiro. - Essa senhora sabe.
Macário tirou a carteira lentamente.
 - Perdão, se há uma conta antiga...
O caixeiro abriu o balcão, e com um aspecto resoluto:
 - Nada, meu caro senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva.
 - Eu! - disse Luísa, com a voz baixa, toda escarlate.
 - Que é? Que está a dizer?
 E Macário, pálido, com os dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro colericamente.
O caixeiro disse então: 
- Essa senhora tirou dali um anel. - Macário ficou imóvel encarando-o. - Um anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. - O caixeiro estava tão excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente. - Essa senhora não sei quem é. E tirou-o dali...
Macário, maquinalmente, agarrou-lhe no braço, e voltando-se para Luísa, com a palavra abafada, gotas de suor na testa, lívido:
 - Luísa, dize... - Mas a voz cortou-se-lhe.
 - Eu... - disse ela. Mas estava trémula, assombrada, enfiada, descomposta.
E tinha deixado cair o regalo ao chão.
Macário veio para ela, agarrou-lhe no pulso fitando-a: e o seu aspecto era tão resoluto e tão imperioso, que ela meteu a mão no bolso, bruscamente, apavorada, e mostrando o anel: 
- Não me faça mal - disse, encolhendo-se toda.
- Macário ficou com os braços caídos, o ar abstracto, os beiços brancos; mas de repente, dando um puxão ao casaco, recuperando-se, disse ao caixeiro: 
- Tem razão. Era distracção. Está claro! Esta senhora tinha-se esquecido. É o anel. Sim, sim, senhor, evidentemente... Tem a bondade. Toma, filha, toma. Deixa estar, este senhor embrulha-o. Quanto custa?
- Abriu a carteira e pagou.
Depois apanhou o regalo, sacudiu-o brandamente, limpou os beiços com o lenço, deu o braço a Luísa e dizendo ao caixeiro: «Desculpe, desculpe», levou-a, inerte, passiva, extinta e aterrada.
Deram alguns passos na rua. Um largo sol aclarava o génio feliz: as seges passavam, rolando ao estalido do chicote: figuras risonhas passavam, conversando: os pregões ganiam os seus gritos alegres: um cavalheiro de calção de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol.
- Macário ia maquinalmente, como no fundo de um sonho. Parou a uma esquina. Tinha o braço de Luísa passado no seu; e via-lhe a mão pendente, ora de cera, com as veias docemente azuladas, os dedos finos e amorosos: era a mão direita, e aquela mão era a da sua noiva! E, instintivamente, leu o cartaz que anunciava para essa noite, «Palafoz em Saragoça».
De repente, soltando o braço de Luísa, disse-lhe baixo:

- Vai-te.

- Ouve!... - disse ela, com a cabeça toda inclinada.

- Vai-te. - E com a voz abafada e terrível: - Vai-te. Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te.

- Mas ouve, Jesus - disse ela.


- Vai-te! - E fez um gesto, com o punho cerrado.

- Pelo amor de Deus, não me batas aqui - disse ela, sufocada.

- Vai-te, podem reparar. Não chores. Olha que vêem. Vai-te!
E chegando-se para ela disse baixo:


- És uma ladra!
E voltando-lhe as costas, afastou-se, devagar, riscando o chão com a bengala.
À distância, voltou-se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul.
Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loura.

Eça de Queiroz in 'Singularidades de Uma Rapariga Loura'

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